Desde há muito repartida entre o seu amor pela Medicina e pelas artes plásticas, a médica de família Filomena Correia (aposentou-se em 2011, tendo antes exercido no Bombarral e em Vila Nova de Poiares, onde foi diretora do centro de saúde local) tem uma exposição patente na Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes, intitulada «O tempo dos tios», que poderá visitar até 6 de abril. Exposta está uma série de obras cuja génese se encontra numa fotografia antiga de um tio-avô da autora, que a mesma usou numa composição de pintura com elementos contemporâneos. Estava dado o mote para um conjunto de imagens marcadas por uma troca de olhares, enamorados e com promessas de futuro, entre o passado e o presente.

 

Como surgiu a ideia de fazer esta exposição?

Filomena Correia – Esta exposição resultou da vontade de mostrar um trabalho incomum (pinturas realistas feitas a partir de retratos antigos, dos séculos XIX e XX, que aliam características contemporâneas), por um lado e, por outro, a escolha da cidade, Abrantes, tem a ver com o facto de, tanto eu como os retratados, sermos naturais desta cidade ou dos arredores.

Acrescento que foi uma exposição itinerante que se iniciou no Porto, depois esteve em Vila Nova de Poiares, onde exerci como médica de família até me aposentar, a seguir em Leiria e em Coimbra. Abrantes encerra este ciclo, justificadamente.

O que espera que os visitantes possam retirar da experiência?

Interligar imagens do passado com elementos contemporâneos, por vezes até divertidos e frequentemente improváveis, pode ser uma forma de valorizar e reforçar laços de família. Está provado cientificamente, pela Genética, que os genes não só transmitem características essencialmente físicas e morfológicas, como é o caso dos traços fisionómicos, cor da pele, tipo de cabelo, estatura, etc., como pode haver transmissão de traços de carácter, talentos, gostos, aptidões e outros considerados mais subjetivos. E que, embora as suas manifestações possam sofrer variações influenciadas por fatores como a educação ou o ambiente, a verdade é que aquilo que somos é um conjunto do que os nossos antepassados nos ofereceram como herança genética.

A partir de comentários deixados pelos visitantes, julgo que uma das consequências possíveis será contribuir para olhar os (seus) antepassados de uma forma mais afetuosa e próxima, dando-lhes realidade. Os bisavós ou trisavós que nunca pudemos conhecer existiram e o nosso património genético está indissoluvelmente ligado a eles. Houve quem dissesse por exemplo: “Assim que chegar a casa vou à procura das fotografias antigas que lá tenho e a que nunca liguei”.

As pessoas que pintei eram da minha família, na sua maioria tios avós, porque as fotos a que pude recorrer eram as dessas pessoas. E todos tinham uma história que eu contei nas oportunidades que houve. E as velhas fotografias originais estavam lá expostas também, talvez a motivarem para novos interesses, quem sabe para pesquisar e conhecer mais sobre a sua própria família

As artes plásticas são, no seu entender, um bom complemento à atividade clínica do médico de família? Ajudaram-na, ao longo da sua carreira?

Estou certa que tanto as artes plásticas como a música, o teatro ou a escrita, só para citar algumas atividades, são complementos excelentes para os MF. Claro que devem ter em conta o gosto e os interesses de cada um, mas se a Medicina é Ciência e Arte, o perfil destes profissionais forja-se ainda mais nessa linha. A nossa especialidade forma-nos como especialistas em pessoas, como nenhuma outra. A componente científica integra (ou deve integrar) um olhar humano, empático e compreensivo sobre a pessoa humana.

Os médicos de família não são, nem têm que ser, técnicos de serviço social, padres ou psicólogos, mas, se pensarmos bem, não são raras as vezes em que desempenhamos todos esses papéis no exercício cabal da nossa profissão. Confiam em nós! Se soubermos merecer essa confiança. E se isso nos traz uma imensa gratificação e sentido de cumprimento de missão, também nos pesa, porque somos pessoas também a lidar com os problemas de outras pessoas. Nessas alturas, se conseguirmos conciliar a profissão com a vida familiar e com algo que nos dê prazer como escrever, pintar ou moldar peças de cerâmica, estamos a cuidar de nós, da nossa própria saúde e a criar estratégias de combater o stress e aumentar momentos de felicidade.

Sempre adorei pintura, mas só nos 15 anos anteriores à minha aposentação consegui dedicar-lhe algum tempo de forma regular. Curiosamente, essa fase coincidiu com a altura em que estava muito ocupada com a direção do meu Centro de Saúde e o envolvimento em projetos importantes, para além da atividade clínica. Talvez tenha conseguido porque as filhas já tinham crescido. Antes disso, tive dois escapes que foram a escrita (poesia e prosa) e tocar piano. E foi muito importante!

Pela minha experiência pessoal é, sem qualquer dúvida, muito importante conciliar a profissão com uma atividade extra profissional.. Poderá até ser na área do desporto, da música ou da representação. Contudo, as artes plásticas parecem ter um valor reconhecido na Saúde. Permitem criar e ver o resultado do que criamos. E isso irá, seguramente, dar-nos mais autoestima, satisfação pessoal e bem estar. Que se refletem em todas as áreas da nossa vida.

A existência de programas de artes plásticas que estão em curso, em alguns países, implementados pela área da Saúde, parecem comprová-lo. É o caso da Finlândia. Trata-se de um programa comparticipado pelo Estado para permitir que a população mais carenciada possa aceder a práticas nessas áreas por serem considerados investimentos com enormes benefícios para o bem estar da população.